Arquivo de etiquetas: França

Ainda a confusão no Marselha: A reputação da Ligue 1

Já o escrevemos: o que se passa no Marselha tem contornos de anedota. Um dos grandes clubes de França perdeu a sua frente de ataque a troca de 15 milhões de euros. Isto porque apenas Payet foi transferido. Gignac e Ayew saíram a custo zero. E para onde se mudaram os jogadores: para dois médios clubes ingleses (West Ham, no caso de Payet, Swansea, no de Ayew) e para o… Tigres, do México.

Para além do amadorismo do clube do sul de França, é também preciso levar em consideração a própria reputação da Ligue 1. Ou seja, o topo do campeonato francês não consegue competir com a mediania do inglês. Para os jogadores parece ser mais prestigiante disputar a Premier League do que lutar por títulos do outro lado do Canal da Mancha. E acredito que esta situação se possa agravar com a hegemonia do Paris Saint-Germain, caso não seja promovida a competição interna. Nenhuma competição sai valorizada quando a luta já parece decidida logo à partida. E Inglaterra é mesmo o melhor exemplo de valorização pela competitividade e emoção.

O presidente da Federação Francesa de Futebol disse que a mudança de Payet foi desprestigiante para o futebol local. Em parte tem razão. Falta saber até que ponto os próprios responsáveis do futebol gaulês têm coragem para promover a competição justa entre equipas.

Fonte: maisfutebol.iol.pt
Fonte: maisfutebol.iol.pt

Futebol 365: A resistência da mística de Bielsa

Texto originalmente publicado a 25 de Abril de 2015, no site Futebol 365

Este texto resultou da colaboração semanal existente entre o Futebol 365 e este blogue. O objectivo desta parceria passa por pensar o futebol por um prisma pouco comum, ou seja, o da comunicação.

Ontem, o Marselha somou a sua quarta derrota consecutiva. O clube francês caiu com estrondo em pleno Vélodrome, perdendo por 5-3 frente ao modesto Lorient. Este resultado coloca cada vez mais em xeque as esperanças marselhesas em vencer a Ligue 1. Para além disto, a permanência em lugar de acesso às competições europeias também está ameaçada. O Marselha ocupa provisoriamente a quarta posição do campeonato francês, mas pode ser ultrapassado pelo Saint-Étienne e igualado pelo Bordéus ainda esta jornada.

Este é um cenário completamente diferente do magnífico arranque de época protagonizado pela formação comandada por Marcelo Bielsa, ‘El Loco’. Nas dez primeiras jornadas, o Marselha conquistou oito vitórias, quase metade das 17 que tem após 34 rondas. Mas se esses números impressionaram, o que mais marcou o arranque marselhês foi o efeito-Bielsa. Isto porque o técnico argentino não deixa ninguém indiferente, porque é um treinador com uma marca irrepetível.

Metodologicamente, Bielsa parece sempre surpreender por onde passa, fazendo fé nos relatos de quem acompanha o seu trabalho. Para além disto, todas as suas equipas procuram jogar um futebol francamente apelativo. Assim sendo, pode-se falar de um ‘jogar-Bielsa’. Já comunicacionalmente é um treinador desconcertante: mesmo não gostando do contacto com a imprensa, consegue marcar a agenda mediática e é o autor de grandes títulos de jornal. Um exemplo disto foi a inusitada sinceridade com que Bielsa criticou a estrutura do clube e a sua política de contratações, em Setembro: “Nenhum dos jogadores que veio para o Marselha foi iniciativa minha”, disse em conferência de imprensa, para desespero da assessora.

Marcelo Bielsa tem ainda uma outra série de pormenores que reforçam a sua imagem, como o facto de beber café, em pleno jogo, sentado numa arca térmica. Esta figura ímpar levou o clube a centrar boa parte da sua comunicação na figura do treinador. São muitos e bons os vídeos que o Marselha tem partilhado e quase todos eles estão centrados na figura de um argentino de quase 60 anos que nem sequer fala francês. Isto diz muito do impacto que Bielsa causa.

Fonte: sport.gentside.com
Fonte: sport.gentside.com

Marcelo Bielsa é uma marca genuína. Tudo o que faz surge com naturalidade e esta qualidade é percepcionada por quem assiste. E só assim se explica que se trate de um treinador visto permanentemente com outros ‘óculos’. Ou seja, numa profissão que vive sempre sob o peso dos resultados, Bielsa é avaliado por outras grelhas. Sendo um treinador reputado, não apresenta um palmarés recheado de troféus. Isto porque as suas conquistas são outras: são do domínio da reputação e da percepção. Bielsa é um símbolo, encarna um ideal e tem uma mística resistente.

Naturalmente, uma marca com estas características tem as suas vantagens e desvantagens, com ambas a materializarem-se em contextos específicos. A marca do treinador e do clube devem propor, esperar e prometer coisas compatíveis, caso contrário não há entendimento possível. Só o tempo dirá se o Marselha, um clube instável com públicos instáveis, adopta o caminho Bielsa ou procura outro tipo de soluções.

O Brasil analisado pelo L’Équipe

As selecções francesa e brasileira defrontam-se hoje, num jogo amigável. A propósito da partida, o L’Équipe procurou sistematizar algumas das razões para a actual selecção canarinha ser vista como mais fraca que a maioria das suas antecessoras. Diz o jornal que o Brasil já não faz sonhar. No fundo, a equipa de Dunga não parece ser coerente com a marca que o futebol brasileiro criou. Nós também já abordámos este assunto aqui.

Fonte: globoesporte.globo.com
Fonte: globoesporte.globo.com

Marca nacional: O Tour de France e a promoção da francité

Os países/nações também são marcas. Naturalmente que não se limitam a este aspecto, mas também o são. Porque também estão constantemente expostos, porque também vivem de/por percepções, porque também geram significados. Mas nem sempre é pacífico falar da marca nacional. Quer por causa da carga fortemente empresarial do termo ‘marca’ quer por responsabilidade da dimensão simbólica do conceito ‘nação’, sendo que a importância deste último factor acentua a conotação negativa do primeiro.

Wally Olins foi um dos pioneiros da gestão da marca nacional. Em 2002, o recentemente falecido autor britânico abordou esta situação nos seguintes termos. “As corporações mudam, fundem-se, alienam, investem, transformam a marca e reinventam-se, mas as nações não mudam, elas são imutáveis. As suas verdades são eternas. Como é que se relaciona esta visão com o facto histórico de que quase todas as nações se reinventaram à medida que os seus regimes e as suas circunstâncias mudaram?”1, questionou.

As ‘tradições inventadas’ de Eric Hobsbawm parecem-me particularmente úteis para resumir a constatação de Olins (são, aliás, mencionadas por este último). Escreveu o primeiro: “As ‘tradições inventadas’ devem entender-se como um conjunto de práticas normalmente governadas por regras manifestamente ou tacitamente aceites e de uma natureza simbólica ou ritual, procurando impregnar certos valores e normas de comportamento, o que automaticamente implica continuidade com o passado. De facto, quando possível, elas procuram estabelecer continuidade com um passado histórico conveniente”2. As semelhanças entre esta definição e as práticas da gestão de marca não são meras coincidências.

Como sempre acontece com as marcas, as nacionais tanto têm públicos internos como externos. Os nacionais e os estrangeiros, portanto. O branding das nações tanto pode querer unir concidadãos como impressionar visitantes. Tanto pode servir para diferenciar nações, justificando a sua existência, como para atrair novas gentes. E o desporto é uma das mais queridas armas na edificação das percepções sobre as nações.

É no desporto que residem os mais significativos mitos e heróis da actualidade, como muitas vezes tem referido Manuel Sérgio. É o desporto que ainda consegue unir dezenas de milhares de pessoas à volta de um único ecrã. As multidões que se juntaram e assistiram em espaços públicos aos jogos do último Campeonato do Mundo de Futebol são um exemplo. A Volta a França insiste em sê-lo de uma forma permanente e muito particular.

Fonte: zcard.fr
Fonte: zcard.fr

O Tour é um constante bilhete-postal de França. O Tour é um dos momentos altos da afirmação da francité, da forma francesa de ver o mundo. É através do Tour que a França que melhor vende nos entra em casa. Tudo aquilo que está no nosso imaginário – começando nas paisagens deslumbrantes, passando pelas vilas típicas e terminando na magnanimidade de Paris – sai promovido e reforçado a cada edição da mais importante competição de ciclismo do Mundo.

No Tour tudo é feito para exaltar o local onde decorre a prova. A Volta a França não se limita a ser uma competição. A Volta a França é, adaptando Ortega y Gasset, a prova e a sua circunstância. E é-o de uma maneira muitíssimo bem trabalhada, pois tudo é consistente e coerente, gerando reforço das percepções.

Para começar, a língua francesa domina os ecrãs. As informações que os milhões de espectadores vêm são quase sempre em francês, por exemplo. Para além disto, as marcas gaulesas dominam o Tour. A Vittel (francesa, apesar de pertencer à Nestlé) e o Carrefour dominam as metas da competição. A Le Coq Sportif pontifica nas camisolas dos melhores ciclistas. Fica apenas a faltar as construtoras automóveis nacionais, que veem a germano-checa Skoda como marca automóvel oficial. O facto de a prova começar frequentemente num outro país (este ano no Reino Unido, no próximo na Holanda) apenas enaltece a centralidade da França durante três semanas. É para lá que vão dar todos os caminhos, afinal.

Este texto foi escrito enquanto espero pelo momento de encerramento do Tour 2014. O do ano passado foi extraordinário e é um perfeito exemplo de tudo quanto tentei argumentar até aqui.

1 Olins, W. (2002) ‘Branding the Nation – The historical context’, The Journal of Brand Management, 9.

2 Hobsbawm, E. (1983) ‘Introduction: Inventing Traditions’ in Hobsbawm, E. & Ranger, T. The Invention of Tradition, Cambridge University Press, pp. 1-14.